Com a presença sobrenatural de Honestino Guimarães, mais de mil estudantes e convidados fazem história no Recife
Estudantes Catarinenses participaram do lançamento da Comissão da Verdade da UNE. O
auditório do Centro de Ciências Sociais Aplicadas, na federal de Pernambuco,
encontra-se com todas as suas luzes apagadas. Está quente, extremamente úmido e
abafado. No escuro, há uma atmosfera impregnante, com a respiração e o suor de
mais de mil pessoas corpo a corpo, número muito maior do que a lotação máxima e
o bom senso. O ar condicionado não funciona. Não há nenhum espaço possível
entre os assentos e muitos ocupam o chão, as portas e até o palco. Do lado de
fora, há ainda outros tantos em esforço para entrar.
A
única iluminação presente atrai absolutamente todos os os olhos. É um telão
onde se projeta um filme. Trata-se da história sobre a vida e as dúvidas sobre
a morte de Honestino Guimarães, jovem brasileiro perseguido pela ditadura
militar e que nunca mais foi encontrado a partir do ano de 1973. Honestino foi
presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) durante o período mais brutal
da história do movimento estudantil brasileiro.
O
filme termina e as luzes são acesas. Muitos choram. São estudantes de todo o
Brasil presentes ao ato de lançamento da Comissão da Verdade da UNE na
sexta-feira (18) em Recife. Os jovens aplaudem, se levantam e gritam:
“Honestino Guimarães, presente!”, seguidamente. Em meio a toda comoção, algumas
poucas pessoas permanecem caladas. Um senhor de meia idade, careca e de óculos,
sentado na primeira fila. olha para baixo com o ar grave. Segura o choro o
tanto que pode, apoiando-se com o cotovelo sobre os joelhos. É Cláudio
Fonteles, jurista, coordenador da Comissão Nacional da Verdade, primeira
iniciativa da história do Brasil para apurar e esclarecer crimes cometidos pelo
estado em períodos de exceção como o que durou de 1964 a 1985.
Pouco
tempo depois, Fonteles está no palco, ao lado de outros convidados, com o
microfone em mãos.“É um momento de muita emoção, Honestino foi meu amigo,
estudou comigo no ginásio. Tenho 66 anos, mas hoje voltou a mim um calor de 14
” declara aquele que é hoje responsável, a pedido da presidenta Dilma, por
organizar o estudo e debate sobre documentos secretos, relatos até então
escondidos, fatos e mistérios que ainda pairam sobre torturas e mortes na
ditadura. Cláudio Fonteles firmou compromisso de colaboração total com a
Comissão da UNE: “Minha proposta é criarmos uma rede permanente de defesa da
democracia”, defende.
Outro
momento. A vice-presidente da Comissão de Anistia Sueli Belato está falando:
“Estou muito emocionada. Nós estamos juntos aqui não porque vivemos uma longa e
difícil noite, mas porque temos um projeto de vida em comum. É um projeto que
não tolera injustiça, não tolera violência”. Ela elogia a iniciativa da
Comissão da UNE e diz que a busca pela verdade, para as famílias das vítimas da
ditadura, vale mais do que a reparação ou indenização da anistia.
Quem
está agora com o microfone é um jovem, sereno, olhar altivo e voz calma. É o
sobrinho de Honestino, Mateus Guimarães, o primeiro familiar dos mais de 40
ex-dirigentes da UNE que serão objeto de investigação da recém-criada Comissão.
“ Quero hoje falar sobre a pessoa de Honestino Guimarães, ele era um ser humano
especial. Foi a qualidade de amar demais que o levou à luta contra a injustiça.
Temos que pensar o que faremos com a liberdade que Honestino e tantos outros
nos deram com suas próprias vidas. Convido a todos a pensar isso com um olhar
de amor, com o olhar de Honestino”.
Há,
em cima do palco, uma série de quadros pregados, trazendo os rostos de
estudantes vítimas da ditadura. O de Honestino está ao centro, é o maior de
todos. Enquanto Mateus ainda está falando, o quadro de Honestino desprende-se e
cai no chão do palco, à frente de todos convidados. O barulho é marcante e
prende a respiração de todos. Há um silêncio quase inifinito, durante apenas
cinco segundos, até todas as pessoas presentes no auditório entenderem o que
acontece. Honestino Guimarães está presente.
Arrebatamento.
O presidente da UNE, Daniel Ilisecu, aceita o sobrenatural e faz,
conscientemente, o gesto que será eternamente lembrado em seu nome: recolhe o
quadro do chão e inenarravelmente ovacionado, acomoda-o em uma cadeira ao
centro dos convidados.
O
ex-ministro dos Direitos Humanos, Paulo Vanuchi, líder estudantil preso durante
a ditadura e também contemporâneo de Honestino, escolhido pelos estudantes para
auxiliar a Comissão da UNE, tem agora o microfone: “Daniel Iliescu refaz
aqui, de outra forma, o gesto do Congresso da UNE de Salvador, em 1979, quando
a UNE foi recriada após a ditadura e ali foi deixada, propositalmente, uma
cadeira vazia em homenagem a Honestino”. Um atual diretor da UNE, espremido
atrás do telão pela falta de espaço, chora sem saber se deixa-se ser visto ou
esconde.
Ao
final de todas as falas, um grupo de estudantes entra no palco em um ato
teatral. Alguns estão presos, de cabeça para baixo, como se estivessem em
paus-de-arara, amarrados por pedaços de tecido. Eles são soltos e os tecidos
são mostrados ao auditório. São bandeiras da UNE, bordadas com flores. Os
jovens começam a cantar aquela que seja, talvez, a maior canção de libertação
da história do Brasil. O refrão diz “apesar de você, amanhã há de ser outro
dia”.
Aparece
um bumbo, um pandeiro e começa o samba. Antes de todos saírem, um último
estudante vai ao palco e toma o microfone para a última intervenção. É um poema
de Honestino Guimarães, escrito em 27 de novembro de 1965. Uma das
estrófes diz:
A cantar a manhã que já chegou
Mais bela que as outras manhãs.
Porque a noite que a precede
É uma noite mais negra que o comum das noites”
As
luzes estão acesas. Os estudantes decidem vencer a noite com festa e deixam o
auditório ao som do samba.
Artênius Daniel
Nenhum comentário:
Postar um comentário